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A Crise da Habitação em Portugal: Entre a Especulação Imobiliária, a Ilegalidade e a Culpa dos Oprimidos

  • Foto do escritor: Unity Raven
    Unity Raven
  • 28 de out.
  • 4 min de leitura

A crise da habitação em Portugal, especialmente em Lisboa, é um drama social alimentado por um desajuste profundo entre o preço das casas e os rendimentos das famílias, levando os cidadãos a dedicarem a maior percentagem do seu salário para um teto. Esta crise, longe de ser um problema de escassez pura, reside na acessibilidade e é agravada por dinâmicas de mercado e a ascensão de grupos que operam à margem da lei.



O Paradoxo da Oferta e o Papel das Imobiliárias


Dados do INE revelam uma contradição: em 2021, Portugal registava 136.800 carências habitacionais, mas tinha um excedente de mais de 17 mil casas vazias prontas a habitar no mercado. O problema não é a falta de casas per se, mas a falta de casas a preços compatíveis com os salários.

Neste cenário, o setor imobiliário é um agente ativo na inflação dos preços. O modelo de negócio das agências, baseado em comissões que chegam a 10% do valor de venda, incentiva os consultores a focar-se no segmento de luxo e a anunciar os imóveis a preços artificialmente altos, perpetuando o ciclo da especulação. A falta de uma base de dados pública sobre o preço real de escrituração apenas agrava esta opacidade, tornando compradores e vendedores vulneráveis.




Ilegalidade e Violência: A Ascensão dos "Anti Okupas"


No vácuo da morosidade judicial e face ao aumento de despejos (muitas vezes motivados por interesse dos senhorios e não por incumprimento), surgem grupos de "despejos extrajudiciais" como o espanhol Anti Okupas Group (e a congénere Desokupa).

• Métodos e Identidade: Estes grupos, que cobram cerca de 3.000 euros por despejo e já atuaram em Lisboa e Almada, são constituídos por ex-polícias, ex-militares e seguranças privados e utilizam táticas "musculadas", vestindo uniformes de estilo policial-militar e recorrendo a confrontos físicos com os ocupantes.

• Ilegalidade: Tanto a PSP, a GNR como advogados e a Associação dos Inquilinos Lisbonenses (AIL) são unânimes: esta atuação é "violenta, ilegal e criminosa", representando um "atentado ao Estado de direito", pois a remoção de pessoas de um imóvel só pode ser feita por ordem judicial. O Ministério Público está a investigar a atividade destas empresas em Portugal.

• Extrema-Direita: A AIL classifica o Anti Okupas Group como empresas de "extrema-direita". Esta ligação é particularmente evidente na congénere espanhola Desokupa, onde membros proeminentes têm ligações ideológicas e registos criminais, incluindo um ex-pugilista conhecido por métodos expeditivos de cobrança de dívidas, e figuras com tatuagens alusivas ao nazismo e perfis supremacistas, que usam as redes sociais para vilificar ocupantes, muitas vezes referindo-se a migrantes com termos pejorativos como "ratos" e "lixo".




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O Exemplo de Vallecas: "Fora Máfias dos Nossos Bairros"


A violência destas empresas não é um fenómeno meramente português ou teórico. Em Vallecas, Madrid, centenas de moradores manifestaram-se para denunciar a presença de empresas de "desokupação" e exigir o direito a uma habitação digna, após um ataque violento que ilustra a sua modus operandi e ligações ideológicas.



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• O Ataque à La Fábrika: A manifestação ocorreu após o ataque de 14 de outubro contra o ginásio popular La Fábrika. Indivíduos identificados com o logótipo da empresa APD Security Iberia (alegadamente ligada a organizações fascistas, neonazis e ao exército israelita) tentaram primeiro expulsar um morador à força e, posteriormente, regressaram armados com bastões extensíveis e pedras. Atacaram as instalações do ginásio (onde se iam realizar treinos de boxe para crianças) e enfrentaram-se com os moradores. O ataque, com gritos como "rojos maricones", resultou em várias detenções e reforçou a crítica à proliferação de empresas de despejo extrajudicial.

A marcha em Vallecas, que exigiu "Fora Desokupa dos nossos bairros", é um exemplo da resistência popular contra a violência ilegal, salientando o histórico de combatividade operária do bairro e recebendo solidariedade de grupos musicais como Rat-Zinger, Non Servium e Fermín Muguruza.



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Desvio de Foco e a Exploração da Crise Habitacional


A crise habitacional, sendo um problema estrutural de desigualdade económica, especulação imobiliária e inação política, está a ser perversamente explorada pela extrema-direita para incitar a xenofobia. Este desvio de foco é a tática mais perigosa: enquanto o povo estiver focado a culpar os imigrantes — os oprimidos com menos recursos — não irá exigir do governo medidas concretas e estruturais para combater a desigualdade económica e a falta de casas a preços acessíveis.

A própria ideia de que a escassez de casas acessíveis em Portugal se deve a imigrantes que, na sua maioria, auferem o salário mínimo ou rendimentos baixos é ridícula e desonesta. Esta narrativa, muitas vezes reforçada pelos grupos violentos como os Anti Okupas, é um cortina de fumo para os verdadeiros problemas. Se a premissa fosse que 1.6 milhões de imigrantes vieram ocupar as casas que deveriam ser dos portugueses, a situação seria absurda: o que aconteceria se expulsássemos os imigrantes e trouxéssemos de volta os 2 milhões de emigrantes que temos no estrangeiro? Não iria aumentar o défice de casas acessíveis em mais 400 mil?

A verdade é que existem casas, só não existem preços acessíveis. A crise não é de escassez, mas de acessibilidade, agravada pela especulação e pela dinâmica de mercado que beneficia o luxo e o lucro.

A intervenção violenta e ilegal de grupos de extrema-direita como os Anti Okupas, que se apresentam com o slogan "se a Lei não actua, actuamos nós", é o sintoma mais agressivo deste desvio de foco. Ao vilificar e atacar migrantes e ocupantes vulneráveis, estes grupos usam a violência privada para impor uma agenda ideológica que responsabiliza os mais fracos.

A solução para a habitação não passa pela xenofobia, pela expulsão de trabalhadores que sustentam grande parte da economia nacional, ou pela tolerância da violência paramilitar. Passa, sim, por uma melhor distribuição da riqueza e por medidas que garantam o direito constitucional à habitação. A prioridade humanista deve ser o reforço deste direito fundamental, exigindo que o Estado pare de tolerar a violência privada e a especulação, e atue com a urgência devida para garantir que a dignidade da vida humana não dependa do lucro.




Referencias:


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